O ano que não passou, por Elisabeth Zorgetz
A passagem mítica do ano nos dá fôlego para começar tudo de novo, diria um poeta. Nesse intermédio, fica a sensação de que deixamos rastros de nossos passos, fatos, sentimentos, memórias, tudo para trás. As pessoas, bem e mal intencionadas, esperam que o ano recomece, o ano em que os aborrecimentos não as acompanharão e será diferente. As retrospectivas honram o passado e vemos os próprios agentes da transformação suspirando, satisfeitos com o que passou. Pois o que passou – quando é belo – é doce de lembrar, difícil de manter e suado de repetir.
Há um homem no centro da cidade que volta e meia passa esbravejando: “só tem lixo e buraco nessa porcaria! Que desgraça!”. As pessoas ao redor comentam: “ficou doido depois que a mulher o deixou” ou “se não gosta por que não se muda, então?”. Um dia acabei retaliando tais comentários. Somos nós os loucos. Ele é o são. Ninguém olhou ou disse nada. Não posso concordar com esse senhor, mas apenas por o caráter reducionista de sua afirmação. Há muito mais do que isso em Ilhéus. Há miséria, há improbos. Crimes de ódio, de cor e de amor. Ignorância e esquecimento. E também há o ilheense. Autor e cúmplice de todos os delitos e vilanias. Resignado às vezes que o desgosto amarga no céu da boca. Mas é de tanta fúria, sem saber que o é. O ano novo, esquadrinhado no tempo, desperta com traços amarelados na pista, que o povo pintou pro povo passar. O doutor disse que era ilegal, que era imoral. Decente é ter gente raivosa presa às prestações do estrato social.
Na História, só carregam alcunhas os justos e os loucos. O jabismo trata seus próprios servidores civis de alto escalão – as pessoas que mantêm as coisas funcionando – não como os trabalhadores politicamente neutralizados de todos os governos legítimos, mas com jeito de inimigos de classe, desconfiando deles, por principio, como representantes do estado que esse governo quer desmantelar. É por isso que esse flagelo vai às rádios colocar irmão contra irmão citando o papa. Seus defensores gritam “NÃO!” sobre as platéias a qualquer ameaça. Não temos, com toda a benção dos santos e orixás, a cidade que poderíamos nos orgulhar. A faremos, com certeza. Com a lembrança de que o tempo não acabou. O homem só o dividiu para que coubesse em nossos medos.
A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.